A cidade, o tanque e a memória

Nei Nordin

Uma polêmica teve lugar em Porto Alegre no ano de 2016. E suas implicações podem nos levar a algumas reflexões sobre como lidamos com nossa memória histórica..

Como se a cidade de Porto Alegre não tivesse problemas sérios a serem discutidos, uma polêmica se acendeu com a notícia de que um desativado tanque de guerra do exército seria transformado em monumento. De pronto o anúncio causou enorme indignação.

Teoricamente os monumentos existem para reverenciar a memória de alguém ou algo que tenha significado. Cumpre então algumas considerações sobre as memórias evocadas frente à notícia da instalação do pitoresco monumento.

Bem verdade que são tempos ingratos em que grupos promovem manifestações públicas pedindo o retorno da ditadura militar como solução para os (imensos) problemas da atualidade. O regime instaurado entre 1964 e 1985 é ainda tema que atinge as sensibilidades de forma muito direta. Historicamente, ocorreu “ontem”. As feridas estão abertas e causam culpa e constrangimentos aos envolvidos que se ocultam ou clamam por justiça. Há um embate entre aqueles ansiosos de apagar certas memórias da ditadura militar e aqueles desejosos de manter viva esta memória para que ela não se repita.

Daí as exaltações daqueles que consideram qualquer referência ao exército brasileiro como uma homenagem direta ao regime de 1964. Uma atitude que guarda exagero, penso eu. Ainda assim é preciso compreender que nem sempre é possível controlar os fatores que determinam a memória coletiva. Um vereador da cidade chegou a propor um projeto proibindo a utilização de qualquer artefato bélico como monumento. Outro grupo pretende uma intervenção artística para descaracterizá-lo.

Lembremos dos casos em que avenidas ou escolas receberam o nome de presidentes da ditadura. Isso sim pode ser considerado uma homenagem direta ao regime. Lembrando aqui que a avenida Castelo Branco teve seu nome trocado para avenida da Legalidade. Por falar em movimento da Legalidade, não custa lembrar que ele só aconteceu por que o senhor Leonel Brizola recebeu apoio do terceiro exército. Um detalhe nem sempre lembrado pelos que honram a memória do movimento que impediu a instalação da ditadura em 1961. Antes disso foram os tanques do general Teixeira Lott que garantiram a posse de Juscelino Kubitschek quando na iminência de um golpe em 1955. Será que o tanque-monumento não poderia evocar estas memórias?

Chega dessa infantilidade de imputar os atos da ditadura à totalidade das forças armadas. Nos primeiros dias daquele abril mais de mil militares foram afastados por não compartilharem dos ideários do regime que se instalava. É preciso pensar o papel do exército na sociedade atual e cabe ressaltar que nosso exército sofre da mesma enfermidade de sucateamento e falta de investimentos que a educação, a saúde e todos os setores necessários e estratégicos.

É verdade que não raro testemunhamos alguns militares emitirem opiniões bem conservadoras e afinadas com o autoritarismo de 1964, mas deduzir que tais posições representem a totalidade do ideário militar demonstra grosseiro reducionismo. Há setores do exército muito atentos para as necessidades atuais dentro dos limites constitucionais em respeito ao papel das forças armadas na sociedade. A doutrina do soldado cidadão é um bom exemplo de como o exército pode capacitar o jovem para o mercado de trabalho após o serviço militar.

Sem falar na questão da tolerância. Não só o exército brasileiro carece de valorização (nem vou tocar no civismo) como imagino que muitas pessoas, não necessariamente defensoras da ditadura, poderão ver o símbolo militar com alguma positividade. Terão elas o direito de ver um monumento ou devem ser taxadas de “fascistas”?

Num Brasil de tantas intolerâncias grosseiras e violentas, deixemos em paz o velho tanque. Não faltariam turistas e portoalegrenses a tirarem selfies em todos os ângulos. Trata-se de um veículo que povoa a imaginação de todo menino e lembro bem do dia da minha infância em que pude pela primeira vez entrar em um desses veículos que estava exposto em uma feira.

Se andam por aí preocupados com referências ao autoritarismo, sugiro então que atentem para a truculência das nossas polícias em reprimir manifestações de estudantes e professores. Vejo aí um belo monumento ao mais autêntico autoritarismo dos tempos da ditadura e não apareceu nenhum político a fazer projetos contra tais expedientes.

Porto Alegre está cheia de monumentos invisíveis pelos quais os cidadãos sem memória passam todos os dias. Não se importam. Não reverenciam sua história. Mal expressam qualquer indignação com as depredações tão freqüentes.

Que um futuro de mais coerência permita que possamos entender que existem os nossos monumentos e os monumentos dos outros e que os espaços públicos são para todos.  

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