Bossa Nova: uma revolução na música brasileira

Nei Nordin

Na noite de 02/08/1962, numa boate carioca chamada “Au Bon Gourmet” reuniam-se num mesmo palco Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto. Esta foi a única vez em que estes nomes estiveram juntos num mesmo palco. Naquela noite foram apresentadas algumas músicas que viriam a se tornar sucessos internacionais como Samba do avião, Samba da bênção e Garota de Ipanema.

A bossa nova ainda era discreta e muito recente. Ela marca suas origens quando Tom e Vinícius começaram a trabalhar juntos. Um ponto de referência certamente pode ser encontrado em 1956, no Rio de Janeiro com o lançamento da peça Orfeu da Conceição. Ali foram quebrados paradigmas estéticos e musicais. Escrita por Vinícius de Morais e musicada por Tom Jobim, com cenário projetado por ninguém menos que Oscar Niemeyer. Tinha ainda a peculiaridade de ser integrada exclusivamente por atores negros, o que por si só era uma crítica ao racismo vigente. Orfeu da Conceição não foi o ato inaugural da bossa nova, mas alguns arranjos melódicos que seriam característicos do gênero já estavam certamente ali configurados.

Bossa 03Na apresentação do “Au Bon Gourmet” em 1962 também aconteceu uma quebra de paradigmas pelo fato de que naquela época não era usual que o compositor cantasse suas músicas. Esta função era exercida pelos cantores profissionais com suas vozes impostas. Raramente um compositor gravava sua composição ou mesmo subia num palco para apresentá-la. Somente com os festivais de música da turma da MPB (Chico, Caetano, Gil, etc.) é que as coisas mudariam no final dos anos sessenta. Situação especial era a de Vinícius de Moraes que, por ser diplomata, teve de pedir permissão do Itamarati, o que só obteve mediante a condição de que ele não fosse pago por isso. Ruy Castro conta que Vinícius, não podendo cobrar em dinheiro, exigiu pagamento em espécie na forma de uísque, o que foi um prejuízo para o dono da casa.

Bossa 05Embora o lançamento da música Chega de Saudade por João Gilberto em 1958, seja considerado como o marco inaugural da bossa nova, é preciso considerar que sua constituição vinha germinando há alguns anos. Antes dela houveram muitas manifestações indicando o que viria a ser o novo gênero. Um exemplo é Tereza da praia, de Tom Jobim e Billy Blanco e gravada por Dick Farney e Lúcio Alves. Há certamente alguns nomes que podem ser considerados como precursores da bossa nova e que “beberam” nas mesmas fontes inspiradoras que vão desde de o jazz californiano chamado West Coast até a música de Heitor Villa Lobos.

Na década de cinqüenta a noite de Copacabana era um caldeirão de efervescência musical. Ali estavam dezenas de boates onde podiam ser encontrados os mais diversos gêneros. Um universo da boemia que certamente justifica ter sido Copacabana o berço da bossa nova. As boates era por excelência os locais para se ouvir música e constituíam-se em ambientes de certas formalidades cujo acesso se dava apenas para maiores de idade.

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Noite do amor, do sorriso e da flor

Na década de sessenta seria a vez da bossa nova ganhar os nichos universitários ganhando um publico mais jovem. Em 1960 aconteceria a “Noite do amor, do sorriso e da flor”, realizado na Faculdade de Arquitetura da UFRJ, produzido e apresentado por Ronaldo Bôscoli. Este é considerado o primeiro festival de bossa nova. Bôscoli seria um dos grandes divulgadores da bossa e uma espécie de líder do movimento. Neste festival já se apresentaram nomes como Nara Leão, Tom Jobim, Norma Benguel, Claudete Soares, João Gilberto, Elza Soares, Dori Caymmi, Dorival Caymmi Filho, Nana Caymmi. 

Reuniões de música começaram ocorrer nas casas da “turma”. Frequentemente na de Nara Leão, então com dezesseis anos. Contavam com a presença de todos os nomes que viriam a compor o cenário musical da bossa nova como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, e diversos nomes que eram recebidos, a exceção de Roberto Carlos que foi isolado do grupo. Entre os motivos estavam o fato de seu timbre vocal soar como uma imitação de João Gilberto, o que causou críticas e antipatias por mais que Roberto jurasse que não estava tentando imitar o ídolo.

Por outro lado o pessoal mais estabelecido da bossa nova também fazia suas reuniões, muitas vezes na casa de Vinícius de Moraes. A contribuição deste para com a bossa foi fundamental por introduzir uma temática até então restrita à poesia.

Há quem diga que a bossa nasceu de um pessoal que tentava fazer samba e não conseguia. Seria então um samba simplificado. Surgia um ritmo “sincopado” genuinamente brasileiro. Antes da bossa, cantar significava ter um longo alcance e potência de voz com muito acompanhamento instrumental. João Gilberto mostrou que era possível cantar baixinho. Ela veio como uma música de uma classe média que ainda não tinha seu gênero próprio. Há também aquela versão que diz que o pessoal da bossa teve de aprender a cantar baixinho por que suas reuniões sempre ocorriam em apartamentos da zona sul carioca em que era preciso não perturbar os vizinhos que queriam dormir. Manoel Bandeira classificou a bossa nova como “uma serenata em ambiente fechado”. A bossa nova hoje é um capítulo obrigatório da história da música brasileira.

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O fino da bossa – 1965

As composições cariocas logo chegavam a São Paulo e eram cantadas nos redutos bossanovistas que lá se formavam. Uma semana após o lançamento de Garota de Ipanema no Rio de Janeiro, a composição já era conhecida em São Paulo. O piano bar Baiuca foi um dos primeiros locais na capital paulista onde se realizaram shows de bossa nova e a cantora Claudette Soares era uma de suas musas. Os estudantes paulistas aderiram ao gênero e logo a coisa se faria num programa de televisão. “O fino da bossa” foi lançado em 1965 pela TV Record e era apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Ficou no ar durante três anos e é considerado como um embrião dos famosos festivais de música daquela década.

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Stan Getz e Carlie Byrd

No ano de 1963 seria gravado nos Estados Unidos o disco “Jazz Samba” por Stan Getz e Carlie Byrd, divulgando internacionalmente a bossa nova com a música Desafinado: a primeira bossa a cruzar fronteiras. O principal palco dos Estados Unidos também receberia a bossa nova. Roberto Menescal, Carlos Lyra, Luis Bonfá, Tom Jobin, João Gilberto se apresentaram no Carnegie Hall de New York. Por diversos motivos o show foi considerado um fracasso, mas travou contato da turma brasileira com músicos norte americanos. Bem ou mal marcou uma explosão da bossa nova nos Estados Unidos: um fracasso que abriu as portas para o mundo e daria projeção internacional aos cantores. Em 1963 Tom Jobim gravaria nos EUA seu primeiro disco solo “The composer of desafinado Plays”. Em 1967 Tom gravaria outro disco com Frank Sinatra: “Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim” com versão da Garota de Ipanema em inglês.

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Astrud Gilberto e Stan Getz

A bossa nova a partir de agora assumiria contornos mais profissionais e se adequaria ao shows business “serio” e perderia muito de seu romantismo de improvisação em reuniões caseiras que movia o espírito inicial do gênero. Em 1965, Astrud Gilberto, esposa de João Gilberto, ganharia o Grammy de melhor canção do ano por gravar, junto com Stan Getz, Garota de Ipanema. A música ainda hoje é a segunda canção mais tocada no mundo, perdendo apenas para Yesterday dos Beatles.

A bossa nova foi uma revolução musical na cultura brasileira. Conhecê-la é necessário para compreender as tendências atuais de nossa produção musical naquilo que ainda conservamos de bom e naquilo que está se perdendo frente as exigências de um mercado de massa. Triste pensar que nunca mais veremos o Brasil efervescente daqueles anos sessenta nem aquela juventude sedenta de cultura.

A bossa não vai voltar mas não precisa ser esquecida. 

https://youtu.be/0BPRYiZOlig

Texto compilado a partir do documentário Hoje é dia de música – vol. 1, direção de Hugo Sukman, 2014. Distribuição HBO.

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