Catarina de Médicis e a noite de São Bartolomeu

Renato Drummond Tapioca Neto

Em 1789, quando eclodiu na França uma revolução que mudaria o curso da história, o governo monárquico passou a ser alvo dos mais sórdidos ataques, especialmente os seus representantes. Nem mesmo os reis de outrora foram poupados e, como punição, seus túmulos na basílica de Saint-Denis foram saqueados, em 1793. Os ossos foram jogados numa vala comum ou vendidos como peças de souvenir[1]. Naquele momento de euforia, o ódio popular estava concentrado especialmente no cadáver de rainha que cerca de 220 anos antes fora considerada responsável por uma das páginas mais sangrentas da história do país: a noite de São Bartolomeu, quando milhares de protestante huguenotes foram massacrados por forças do governo. Reconhecida por muitos como uma fanática religiosa e envenenadora, a viúva do rei Henrique II foi alçada pelos revolucionários ao rol das mulheres mais vis que já existiram, como Agripina e Messalina, tornando-a assim num símbolo da suposta fraqueza e perversidade da condição feminina. Sem dúvidas, Catarina de Médicis foi uma das personalidades mais estereotipadas do passado. Contudo, a historiografia moderna tem sido um pouco mais benevolente para com sua pessoa, analisando suas atitudes e esforços para manter a coroa dos filhos, dentro do contexto social e político no qual estava inserida.

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Retrato de Catarina de Médicis como viúva, pintado por François Clouet.

De acordo com uma versão mítica, num certo dia de 1560, Catarina de Médicis foi chamada pelo seu astrólogo Nostradamus. Conduzida por ele à frente de um espelho mágico, ela teria contemplado no objeto a imagem de uma grande sala. De repente, três rostos foram se delineando. Eram os seus três filhos mais velhos, que apareceram em sequência: primeiro Francisco, cuja face deu apenas uma volta diante de Catarina; em seguida, Carlos, que deu catorze voltas; por fim, Henrique, que deu quinze. A rainha-mãe ainda contemplou no espelho o rosto de mais uma pessoa, mas esta não era o duque de Alençon, seu quarto filho homem, e sim Henrique de Navarra, que deu 22 voltas na sua frente. O que aquelas visões poderiam significar? Catarina de Médicis ficou pensando nisso por muito tempo, até que no dia 5 de dezembro daquele ano, seu primogênito, rei desde a morte do pai, faleceu. Aterrorizada com o acontecido, a soberana chegou a uma terrível conclusão: cada volta que uma das faces dava no espelho correspondia a um ano de reinado. Esse diagnóstico era ainda mais preocupante, uma vez que denunciava o fim da dinastia Valois na França. Determinada a impedir esse destino, Catarina precisou agir rápido: legou à nora, Mary Stuart, a tarefa de velar por Francisco, enquanto ela preparava o futuro na pessoa do seu secundogênito, Carlos IX, então com 10 anos de idade.

De acordo com a lei sálica do século XIV, as mulheres estavam excluídas da sucessão do trono da França, mas não de uma possível regência, no caso da minoridade do monarca reinante. Catarina de Médicis acreditava então que esse precedente seria suficiente para lhe garantir o governo regencial, mas suas pretensões esbarraram no preconceito que os príncipes de sangue real tinham para com uma descendente de banqueiros italianos. Não obstante, os país encontrava-se na iminência de uma guerra civil entre católicos e protestantes, além de ameaçado pela política expansionista da casa de Habsburgo. Catarina teve então que ter muita astúcia para alcançar seus objetivos. Driblando seus adversários políticos, ela conquistou o apoio de Antoine de Bourbon e do seu irmão, o príncipe de Condé, em troca do perdão real por se sublevar contra a autoridade de Francisco II. Por meio de promessas, barganhas, chantagens e mesmo ameaças, a rainha conseguiu também suporte do conselho privado ao governo regencial. Por fim, dirigiu-se aos Estados Gerais (únicos, a priori, com poder de vetar sua nomeação) para pleitear sua causa. Estes, por sua vez, concederam-na o título de regente, embora ela não gozasse da plenitude dos direitos governamentais de um monarca “ungido pelo Senhor” e com direitos dinásticos à coroa.

Todavia, o governo regencial de Catarina de Médicis, em tese, só duraria até a proclamação da maioridade do seu filho, aos 14 anos. A partir daí o jovem poderia decidir se gostaria de continuar sob tutela da mãe ou não. Catarina, porém, foi mais esperta e tratou de fazer com que Carlos IX fosse declarado maior aos 13 anos (idade canônica), devolvendo-lhe diante do parlamento a autoridade sobre o reino. Devido à sua inexperiência e falta de aptidão para governar (afinal, ainda era praticamente uma criança), Carlos nomeou a mãe Superintendente de Estado, de modo que ela continuaria a reinar de forma quase autocrática. A rainha tentou desenvolver uma política conciliatória que restituísse a paz dentro da França e com as potências vizinhas. Para tanto, Catarina organizou casamentos vantajosos para os seus filhos: em 1570, o rei contraiu matrimônio com Elisabete da Áustria, filha do imperador Maximiliano II; as princesas Elisabete, Cláudia e Margarida se casaram com Felipe II de Espanha, o duque Carlos III de Lorena e Henrique de Bourbon, rei de Navarra, respectivamente. Só os príncipes Henrique o duque de Alençon não se curvaram às vontades da mãe. Entretanto, longe de trazer a tão almejada harmonia, a política matrimonial desenvolvida por Catarina trouxe ainda mais discórdia para o reino.

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Retrato do rei Carlos IX da França, pintado por François Clouet.

A rainha-mãe procurou manter o rígido cerimonial da corte como forma de preservar o prestígio da instituição monárquica e da casa de Valois. Ela soube se cercar de uma simbologia que ressaltasse o importante papel político que desempenhava no reino, construindo palácios novos, como o das Tulheiras, e empreendendo viagens pelo reino com Carlos IX. Filha do renascimento italiano, ela incentivou as artes e contratou um verdadeiro time de artistas e arquitetos para embelezar as residências reais, palcos de grandes bailes para a nobreza do período. Numa carta posteriormente enviada ao filho Henrique, quando este já era rei, ela explicava que “para viver em paz com os franceses e garantir o seu afeto, eram necessárias duas coisas: mantê-los alegres e empenhados em exercícios honestos… Porque, se não fazem a guerra, arranjam outras ocupações mais perigosas”. As festas oferecidas pela coroa, porém, logo se tornaram alvos de críticas entre os huguenotes, devido aos relatos de orgias, em que homens se vestiam como mulheres, e vice-versa. A princípio, Catarina demonstrou tolerância religiosa para com os protestantes, acolhendo muitas das suas queixas. Infelizmente, ela esbarrou com a intolerância da nobreza católica, chefiada pelos Guise, que desaprovava a política conciliatória da coroa. Sendo assim, a rainha-mãe se encontrava num grande dilema: como agradar as duas facções?

O resultado desse conflito de opostos foram as oito guerras de religião, ocorridas num espaço de 20 anos, das quais a mais famosa foi a chamada Noite de São Bartolomeu. As circunstâncias que desencadearam esse conflito até hoje são objeto de especulação. De acordo uma versão, Carlos IX, numa tentativa de se livrar da tutela da mãe, nomeou o líder do partido huguenote, almirante de Coligny, como seu conselheiro, que o instava a entrar em guerra contra a Espanha em prol da independência da Holanda. Para reconquistar a ascendência sobre o filho e evitar um conflito armado contra Felipe II, Catarina teria dado ordens para assassinar Coligny. Como o plano fracassou, a rainha-mãe convenceu o rei de que havia uma grande conspiração huguenote para assassinar a família real, durante os festejos de casamento de Margarida de Valois com Henrique de Navarra, no palácio de Louvre, em 24 de agosto de 1572. Devido à escassez de documentos, não é possível comprovar essa versão. O fato é que Carlos IX, voluntariamente ou não, deu ordem de execução contra alguns líderes huguenotes, incluindo Coligny. Como sustenta Jean-Louis Bourgeon, talvez o rei tivesse sido forçado a tomar essa atitude “pela ameaça da Espanha de que entraria em guerra, pela sublevação da população parisiense insuflada pelos Guise ou por sua própria incapacidade de se fazer obedecer”.

Todavia, o que deveria ser uma operação de execução contra os líderes protestantes fugiu do controle dos seus articuladores e acabou se transformando numa carnificina que se alastraria por toda a França. Não se sabe ainda o número exato de vítimas, embora possam ser calculadas entre 20 e 30 mil. Dois dias depois, em 26 de agosto, Carlos IX justificou sua atitude ao parlamento com base na suposta conspiração que visava o assassinato dele e de sua família. Os huguenotes, porém, apontaram a rainha-mãe como a verdadeira culpada, devido à influência que esta exercia sobre o rei. Nas palavras da professora Benedetta Craveri:

“Ninguém ignorava a influência que ela exercia sobre o filho, e a misoginia e a xenofobia concorriam para fazer dela o perfeito bode expiatório: foi aquela aventureira sem escrúpulos, vinda da Itália, que arrastou para a lama a monarquia francesa. Imaginavam-na traiçoeira e astuta como todos os florentinos e desconfiavam que fosse discípula de Maquiavel. Dizia-se, inclusive, que tinha educado os filhos de acordo com os ensinamentos do Príncipe, e o massacre foi visto como “a aplicação do preceito de Maquiavel de que é necessário cometer todas as crueldades necessárias de uma só vez” (CRAVERI, 2007, p. 55).

O veredito de culpabilidade de Catarina era unânime. Um panfleto anônimo de 1755, intitulado o Discurso maravilhoso da vida, das ações e dos abusos de Catarina de Médicis, rainha-mãe ajudou a difundir por toda a Europa a sua lenda negra, contribuindo assim para reforçar a crença de que as mulheres jamais deveriam governar.

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O Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois. No canto superior esquerdo da imagem, é possível ver catarina de Médicis, trajada de preto, contemplando a carnificina.

“Não esperemos dela mais que crimes e ruínas… É de sua natureza não poder ter paz sem fazer o mal. Direi mais, que nunca uma mulher governou nosso país sem lhe trazer desgraça”. Assim o referido panfleto definia o governo das mulheres, numa crítica aberta à Catarina de Médicis. As notícias do massacre da Noite de São Bartolomeu foram mal recebidas por todos os países protestantes. Na Inglaterra, por exemplo, a rainha Elizabeth I e sua corte receberam o embaixador francês vestidos totalmente de negro, em sinal de luto pelas mortes dos huguenotes. Logo, mais desgraça viria a cair sobre a cabeça da rainha-mãe: já tendo perdido a filha Elisabete, em 3 de outubro de 1568, a ela se seguiu a irmã Cláudia, duquesa de Lorena, no dia 20 de fevereiro de 1575. Em 30 de maio do mesmo ano, morria Carlos IX, de tuberculose, aos 24 anos de idade. Como o rei não tinha filhos, ele foi sucedido pelo irmão Henrique. A profecia de Nostradamus estava, dessa forma, se cumprindo. Foi dito a Catarina pelo astrólogo que seus três filhos mais velhos cingiriam a coroa. Agora, dois já haviam morrido e o medo de que a dinastia de Valois chegasse ao fim começou a se apoderar da rainha-mãe. Era preciso que o novo monarca gerasse um sucessor o quanto antes, pois no caso do falecimento de Henrique III e do seu irmão mais novo, a coroa passaria para as mãos de Henrique de Bourbon, rei de Navarra, casado com Margarida de Valois, a famosa rainha Margot.

Referências Bibliográficas:

ASTUTO, Bruno. Catarina de Médicis. – Rio de Janeiro: Lacerda, 2001.

CRAVERI, Benedetta. Amantes e rainhas: o poder das mulheres. Tradução de Eduardo Brandão. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[1] Com a restauração da monarquia, em 1815, o rei Luís XVIII ordenou que todos os ossos fossem recolhidos e depositados em duas grandes urnas, construídas para essa finalidade.

Texto coletado do blog Raínhas trágicas e publicado com autorização

2 respostas

  1. Em sua visita a Roma, o embaixador veneziano descreveu Catarina como “pequena de estatura, magra e sem feicoes delicadas, mas tinha os olhos salientes peculiares da familia Medici”.

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