Crash, no limite: até onde chega a violência

Nei Nordin

Muitos filmes ambicionam retratar fielmente a realidade de um evento ou de um contexto. Provavelmente nenhum seja capaz de lograr tal êxito. Os historiadores concordam que a exata realidade é inatingível no cinema.

Crash 03Contudo, alguns filmes são muito felizes em fornecer elementos para a reflexão sobre uma realidade. Penso que este é o caso de “Crash – No limite”, lançado em 2004 e dirigido por Paul Haggis.

Para qualquer diretor com experiência mediana não seria difícil realizar um filme sobre a temática da violência. Afinal, ela está sempre presente em maior ou menor grau e angaria largo número de apreciadores. O diferencial em “Crash” é que ele demonstra como a violência vai muito além da agressão física. Ela atua psicologicamente sobre as pessoas e forma um círculo vicioso de medo, ódio, intolerância e preconceito.

Neste sentido, “Crash” é um filme muito interessante por induzir a uma reflexão sobre o fenômeno da violência e suas implicações na forma como as pessoas conduzem suas vidas e até que ponto se deixam determinar por ela. Muito mais do que apontar a violência das ruas como um problema social, gerado pela explosão demográfica urbana, baixa distribuição de renda, etc., este filme aborda o fenômeno da violência como uma mentalidade coletiva com raízes muito profundas no corpo social.

Trata-se da abordagem de diversas situações vividas por pessoas em posições diferentes, seja por sua classe social, etnia ou profissão. No decorrer da trama vemos o entrelaçar da trajetória dos personagens em situações de tensão e medo.

Assim, podemos observar uma variedade interessante de atores sociais com diferentes perspectivas e reações. A esposa estressada de um político que vive amedrontada, culpando negros e latinos pelos males da vida moderna; o comerciante iraniano revoltado contra os assaltos de que é vítima procurando a solução nas armas; o assaltante negro que ostenta todo um discurso de justificativas ideológicas para seus atos como uma reparação às injustiças sofridas por sua “raça”; o policial já impregnado pela brutalidade cotidiana de seu ofício; o negro de alto poder aquisitivo que procura adequar-se à sociedade dos brancos fazendo “vista grossa” aos racismos diários, etc.

Crash 04O que o filme nos oferece é uma visão muito clara de como a vida moderna está impregnada pela violência e como as pessoas incorporaram em seus comportamentos o ódio, o racismo, o medo e a intolerância como se fossem traços naturais da personalidade humana. Muito além de fazer com que as pessoas enclausurem-se em residências gradeadas, percebe-se que a violência atrofia seus sensos de humanidade e solidariedade, fazendo emergir em cada gesto o pior de cada um.

A ambientação da trama se dá no contexto da sociedade norte americana, especificamente a cidade de Los Angeles. A analogia com a realidade brasileira é, contudo, automática. Também experimentamos este processo. Crash não é um filme de consumo interno como tantos e sua mensagem é universal. Poderemos facilmente nos reconhecer vivendo as cenas retratadas.

Por aqui presenciamos a ascensão do crime organizado contra a polícia mal equipada. O Estado afunda-se numa corrupção que consome valores que deveriam ser destinados à educação, segurança, saúde e por aí afora. As demonstrações de força das organizações criminosas evidenciam a incompetência ou falta de disposição política real em viabilizar soluções aos nossos problemas sociais.

Crash é um filme perfeitamente adaptado à sociedade brasileira. Não nos deixa a impressão de ser uma obra de ficção. Soa como um documentário/denúncia. É um filme que contem uma pesada carga de verossimilhança causando a sensação de desconforto pelo auto reconhecimento nas situações apresentadas. Certamente ao final do filme o espectador não sairá com medo de ser assaltado. É mais provável que experimente certa angústia pela constatação de que crash também reproduz aspectos de sua própria existência e pela conscientização de que o mundo vai muito mal.

No fim, não é apresentada nenhuma solução ao problema proposto. Todos os personagens seguem sua sina. Alguns são levados à refletir sobre sua vida, outros amargam a tristeza e a depressão.

Crash 02Há, contudo, uma cena final que indica um possível caminho que não deixa de ser conhecido por todos, mas que nunca é seguido. Uma espécie de óbvio obscuro. Trata-se do momento em que o personagem Anthony, vivido pelo ator Ludacris, ao repassar uma caminhonete roubada ao interceptador, descobre que a mesma está cheia de imigrantes ilegais. Todos orientais, famintos, subnutridos e estropiados pela viagem. É a sorte grande: o receptador oferece uma soma “por cabeça”, proporcionando um lucro muito acima do valor pelo carro roubado. A cena seguinte mostra Anthony estacionando o carro em uma rua do centro da cidade, libertando os imigrantes à sua própria sorte. O que na prática não melhora muito sua situação de abandono num país estranho e de idioma desconhecido.

Esta cena indica que talvez a possível solução esteja em cada um fazer sua parte, por ínfima que seja. Mas a mensagem geral do filme não é de positividade. Crash torna-se um filme visionário por alertar sobre os rumos que estamos seguindo século XXI adentro. No final não será possível haver uma elite privilegiada e protegida da violência.

O cerco se comprime cada vez mais e seus efeitos serão sentidos por todos. As políticas sociais de distribuição de riqueza e estrutura devem ser pensadas universalmente e não apenas para as populações abastadas e resguardadas em seus condomínios fechados. Muito em breve será impossível a separação entre ricos e pobres.

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