Postado em 27/04/2015
A moral é a decisão sobre como viver, portanto, exige o estabelecimento de valores. Todavia, por muito tempo, os homens entenderam os conceitos como eternos, imutáveis, bons por si mesmos; exerceram o que Nietzsche chamava de “egipcismo”: a tentativa de transformar as ideias em múmias, de conservá-las, de mumificar a sua valorização. Consideramos, pois, a verdade, o altruísmo e a calma como preceitos superiores a mentira, egoísmo e inquietação por sermos motivados por coerções sociais com pano de fundo histórico. Assim nasce a análise nietzschiana da história da moral, de sua genealogia, descrita em três tratados a serem comentados.
Antes de tudo, entenda que o pressuposto pilar de toda argumentação do autor é o de que a moral não comporta valores em si, ou seja, a moral é sempre a moral de alguém, não é universal, é uma construção fundamentalmente sociopsíquica e, portanto, potencialmente mutável. Ele a classificava sob duas qualidades: a moral fraca, dos escravos, sacerdotes, submissos, inferiores e plebeus, e a moral forte, dos superiores, autoritários, despóticos, aristocratas e guerreiros.
A moral dos fortes é produto de uma força vital, assim, incentiva a guerra, o embate, o subjugo do outrem, a ação e a conquista, já que eles são vitoriosos. Eles definem a beleza pelo o que são, ditam o que é virtude baseados em características de si mesmos. São os aristocratas, os que podem explodir, externalizar, expressar os seus instintos e vontades, sem restrições. Extraem a felicidade do amor fati, da ação, do sentir, da afirmação da vida, da dominação dos seres.
Justamente por essa repressão dos fortes para com o outro, nasce a moral dos fracos. Ela é, ao contrário da outra, sintoma de uma fraqueza vital. Os inferiores, assim como todas as espécies de homens, terão, inexoravelmente, que se libertar de seus instintos, embora estejam impedidos de externalizá-los. A saída do inferior é, assim, internalizar as suas vontades, violentar a si ao invés do outro para saciar a sua vontade de violência, por exemplo; como medida protetiva evocam a anulação do mundo da vida, dos sentidos, dos prazeres, da carne, da guerra e da beleza enunciada pelo forte; transmutam valores: tornam superior o altruísmo, a “verdade”, razão, obediência, servidão, cautela e o pacifismo em nome de um nada, de Deus, da razão, do mundo das ideias, enfim, de um ideal ascético. Deste modo, ao contrário dos aristocratas – os que são ativos, os que definem a vida a partir de um Sim e do que querem –, os escravos, fracos e reativos definem a vida a partir de um Não, do medo da repressão, do que não querem.
A inversão dos valores evidencia-se, então, filologicamente, da seguinte forma: antes da supremacia dos inferiores, o “bom” era a qualidade do forte, enquanto que o “mau” era qualidade do fraco, onde os valores desses significantes eram definidos pelo forte. Contudo, após esse período, o “bem” é aclamado e definido como o que é moral e o “mal” como o que é imoral, sendo as atitudes morais ou imorais definidas pelos fracos, com base num ideal transcendente e utilizadas para tornarem-se virtuosas ao ver do outrem e, deste modo, socialmente elevados. Isto é, há uma troca dos valores que as palavras “bom” e “mau” possuíam.
Essa transmutação é documentada, inclusive, na antologia bíblica. No antigo testamento é evidente um temor a Deus pelo fato dele ser punitivo, explanador da crueldade e violência enquanto medida de controle da sociedade. Javé, sob esse aspecto, é a figura máxima da moral dos fortes: é autoritário, ditador, despótico e impõe ativamente limitações aos reativos com base no que lhe satisfaz; assim como um latifundiário pune seus escravos, a deidade pune a humanidade com dilúvios, chuvas de fogo, pestes, doenças e, sobretudo, com o inferno por desobedecerem as suas súplicas. Aliás, um dos primeiros grandes atos Dele assim que fez o mundo, foi punir o homem por tentar alcançar o conhecimento, por tentar satisfazer a sua vontade de dominação. Portanto ele mostra o quão errado é se submeter aos prazeres da carne, o quão errado é estar “nu” para o mundo, sem medo, como um forte faria; justamente, por ser um forte e, no fundo, pretender, com isso, disseminar sua dominância sem concorrências. Consequentemente, expulsa os homens de um mundo vívido e perfeito e os manda para um mundo de sofrimentos onde eles precisam vestir-se moralmente e reprimirem as suas vontades. Já no novo testamento, após Sócrates, a deidade ditadora converte-se na figura de Jesus Cristo: um perfeito reativo explanador do amor, altruísmo, pacifismo, perdão e da compassividade; a máxima constatação disso é a crucificação de Cristo: ele vem ao mundo para punir a si mesmo em detrimento da covardia de punir a humanidade: é o rei dos fracos!
Ao ver de Nietzsche, a natureza é uma luta de forças, uma tentativa constante de dominação entre frações do mundo. O Sol impõe sua força, sua dominação sobre a realidade, expandindo-se sobre o universo através de sua radiação. Perdemos uma guerra deste modo, ao olharmos diretamente para ele: sentimos dor, ficamos tristes, nervosos e, por conseguinte, externalizamos o reflexo da violência por ele praticada à nossas retinas reclamando. Logo, obtemos consciência de nossa perda, dado que quaisquer fenômenos, no homem, traduzem-se em interpretações do corpo, geram sentimentos específicos correspondentes a cada acontecimento, sendo as perdas convertidas em sentimentos ruins e as vitórias em sentimentos bons.
O pensamento é, no homem forte, passageiro e jovial: as lembranças, conceitos e afetos são fluidos, estão sempre em constante estado de esquecimento, de manutenção. A permanência do pensamento é, sob esse aspecto, uma ferramenta de domínio, ou seja, o forte a utiliza para não ser pego desprevenido: memoriza padrões da natureza e os utiliza como armas na guerra entre forças. No fraco, a memória é um defeito, um mal funcionamento do esquecimento. Portanto, enquanto um subjuga a memória com o fim de usá-la para os seus propósitos, o outro se subjuga à ela, colocando-a num pedestal. Nietzsche denomina este último acontecimento de “ressentimento”: o constante estado de revisitação de afetos, de fortificação e alimentação de um estado de repressão.
“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação.”
Os oprimidos, como todos os indivíduos, são dotados de uma vontade de violência. Reconhecem-a como medida de coerção do outro, de libertação dos instintos e de dominação. Portanto, quando subjugados, tentam expressar a sua insatisfação subjugando o mais fraco que ele; então os rebentos se sucedem em cadeia, uma vez que não há como exonerar as vontades e, inexoravelmente, elas serão expostas.
É o tradicional fenômeno sociológico do ocidente, o dito “ciclo da agressão”: o pai é reprimido no trabalho, logo, externaliza sua insatisfação violentando sua esposa que, por conseguinte, externaliza sua insatisfação batendo nos filhos que, assim, externalizam suas insatisfações fazendo bullying com amiguinho da escola que, consequentemente, externaliza sua insatisfação ouvindo metal, lendo livros satanistas para irritar os pais católicos, dizendo que os odeia e batendo no cachorro que, por isso, começa a morder todo mundo sem razão aparente e o efeito dominó sucede-se indefinidamente gerando um espírito perpétuo de insatisfação com a vida.
Aliás, é a partir dessa guerra entre forças que nasceu a homofobia. O homofóbico, normalmente, é o que quer externalizar os seus instintos sexuais, sejam eles homoeróticos ou não, mas que é reprimido por imputações morais e religiosas. Pratica, portanto, a antiga estratégia covarde dos homens: imputa correntes aos afirmadores da vida, da sexualidade, do prazer, para não ser atropelado pela força e coragem dos ditos “promíscuos”. Por isso, geralmente, não se abstém de outros preconceitos relativos a poligamia, prostituição e/ou semelhantes “imoralidades”; tal como um típico fraco, justificam seu moralismo em um ideal transcendente, em bíblias legitimadas por um deus ou num suposto valor objetivo da “família” ou da “democracia”. Moralistas de quaisquer espécies são, portanto, como diriam alguns, recalcados por excelência!
No entanto, há quem não consiga subjugar o outro, este é mais fraco entre os fracos. Ele internaliza suas emoções ao ponto de, no apogeu de sua amargura, proceder assassinando a si mesmo para satisfazer a sua vontade de violência; não assassina o outrem por conta de repressões morais, pela evocação religiossocial e constitucional do altruísmo, passividade, cautela e “amor” ao próximo. Portanto, a vontade de embriagues, de trabalhar, de comer, de fumar em demasia e de se cortar são sintomas muitíssimo comuns de um estado de repressão. Isto é, digamos, o conceito de “ação e reação” de física aplicado a fenômenos psíquicos, que ao ver de Nietzsche não passavam disso, de fenômenos físicos.
Disso nasce a ideia de “alma”, a divisão entre corpo e mente. Os homens definem a mente como o seu “eu” e, portanto, vêem nisso um motivo para martirizar o próprio corpo, reprimir a si, culpabilizar-se pelos seus desejos sexuais, pelas suas vontades, apetites e instintos. Não enxergam o óbvio: “o corpo é o pensador!”
Inclusive, em A Gaia Ciência, Nietzsche estabelece uma relação muito peculiar entre a alimentação e as diferenças comportamentais entre povos. Para ele, o que se come, o ambiente em que se está, as coisas que se vive, são aspectos absolutamente determinantes das nossas crenças, escolhas e vontades, uma vez que o corpo é um eterno relacionamento fisiológico com o meio. Ele acreditava tão fielmente nisso que estabelecia relações entre o seu estado de saúde e o clima do lugar em que estava; assim acabava por se negar a estar sujeito a certos tratamentos médicos relativos à sua doença.
“A enorme predominância do arroz como alimento leva ao uso do ópio e dos narcóticos, do mesmo modo que a enorme predominância das batatas como alimento leva ao uso do álcool: – mas graças a uma contrapartida mais sutil, esse alimento leva também a maneiras de pensar e de sentir que têm um efeito narcótico. Na mesma ordem das idéias, os promotores das formas narcóticas de pensar de sentir, como esses filósofos hindus, se gabam de um regime que gostariam de fazer dele uma lei para as massas, um regime que é puramente vegetariano: procuram assim despertar e aumentar a necessidade que eles são, só eles, capazes de satisfazer.”
Logo, para o autor, deveríamos encarar o corpo como uma obra de arte a ser lapidada continuamente, transformar-nos em ‘rãs pensantes’ dotadas de um espírito irrequieto e insatisfeito com o repouso, apaixonados pelo devir e pela transformação das ideias e dos sentimentos. Amor fati não significaria, portanto, amor ao presente estático, e sim ao movimento, uma vez que ele, o fluxo, é a verdade a ser amada, o fati constatado.
Como já foi demonstrado, nos primórdios da civilização, a crueldade existia como aspecto de relação direta aos valores estabelecidos, era a lei do mais forte em ação: quem tinha mais poder era o tirano, o dominador autoritário que subjugava, escravizava e violentava o mais fraco em detrimento do que o favorecia. Havia, desta maneira, uma divisão social entre escravos e tiranos, onde o que somente a moral dos fortes ditava era tido como relevante. A violência que o forte imputava ao fraco gerou a moral dos ressentidos que foi, em si, uma resposta ao conservadorismo tirano, uma tentativa de desqualificar a moral vigente.
Da evolução da moral dos fracos nasce o sacerdote, que é aquele que interioriza os instintos, como os escravos e, sobretudo, o que os tira do mundo da vida, da perda e que os apresenta o “além-mundo”, um nada inacessível onde os fracos serão os fortes, onde o bom será o mau, onde os últimos serão os primeiros e, acima de tudo, onde eles têm alguma significância.
Esses sacerdotes conseguem apoio e, assim, estabelecem a sua supremacia sobre a realidade. Estes, evidentemente, eram chamados de judeus, depois passaram a ser chamados cristãos e hoje são os racionalistas, comunistas, socialistas, “céticos”, aprioristas e cientificistas: todos profanadores da vida, divulgadores da ideia de que a vida é feia, injusta e de que, portanto, não merece ser vivida: vivem a razão e a busca por uma verdade “além das aparecias” – lê-se: além da vida.
Explora-se, então, o conceito de pecado, onde o homem é punido em detrimento de sua suposta liberdade: o forte pune o escravo por ser causador de sua insatisfação, já o fraco pune o outro em detrimento de sua suposta liberdade, arranja um motivo a mais para transferir a ideia aos outros de que eles devem se punir e, posteriormente, de que devem ser perdoados por uma figura elevada e mais próxima do ideal transcendente aceito.
“‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ – assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si’”
Assim se introduz o conceito de niilismo na filosofia nietzschiana, que é classificado de dois modos: o niilismo reativo, dos que dão valores transcendentes aos seres a partir de um nada, de um vazio, de um ideal ascético; e o niilismo dos ativos, dos que dão valores aos seres a partir do que querem e da afirmação de seus instintos, ou seja, da própria vida.
O autor, insatisfeito com o mundo moderno, com base nesse último ideal, propunha uma transmutação dos valores e o nascimento de um novo homem “além do bem e do mal”, que estivesse além das perspectivas morais imputadas pelo mundo, livre de deidades, que encontrasse o sentido da vida dentro dela mesma, que fosse rã pensante afirmadora de seus instintos. Ele o nomeava: Übermensch, o “além do homem”. Este seria, então, o norte a ser buscado pelos indivíduos, o ideal mais elevado.
Não há, pois, existência humana vivida no vazio de significância. Ainda que entendamos que não existem valores objetivos em fragmentos da realidade, continuaremos a atribuir valores às coisas, a proceder com estratégias de libertação das vontades, “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”.Para muitos, quiçá, esse texto tenha dado a plena certeza de que Nietzsche foi, como dizem muitos cristãos – por motivos óbvios, claro –, um homem imoral. Ora, estou aqui justamente para confirmar essa certeza e, a todo caso, adiciono: viver na imoralidade é mais que preciso quando a moralidade presente se mostra ineficaz para o que se pretende! No entanto, o que se pretende? Aliás, por que se pretende? Essa sim é a questão a se pensar.
Texto coletado do site Causas Perdidas e publicado com autorização
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