Atlântida: Uma análise do mito da cidade submersa

Thiago Ribeiro

Postado em 30/03/2015

A história de Atlântida é uma das mais famosas existentes. É tão utilizada em filmes, livros, séries, desenhos, contos e historietas de vovó que dificilmente alguém não a conhece no mundo de hoje.

Há quem acredite em sua existência assim como há quem a considere apenas uma historinha passível de ser jogada em alguma ficção junto da Caixa de Pandora e alguns deuses nórdicos (favor sentir meu desabafo nesse momento).

O que talvez pouca gente saiba é que a primeira referência escrita que temos de Atlântida vem de ninguém menos que Platão (sim, o mesmo que a tia da aula de Filosofia do colégio ficava comentando). O filósofo grego faz referência à cidade submersa em dois de seus diálogos, escritos já em sua velhice: Timeu e Crítias, este último, infelizmente, não terminado.

Meu objetivo aqui é apenas falar da Atlântida conforme descrita por Platão, fazendo comentários que envolvem mais a questão da história do que questões de caráter do pensamento do filósofo. Portanto, não falarei de outros temas que se fazem presentes nos diálogos.

Atlântida 02

Timeu

 Escrito alguns anos antes de Crítias, o Timeu dedica apenas pouco espaço para o tema de Atlântida, o qual aparece em seu início. Em ambos os diálogos a questão da Atlântida é desenvolvida pelo personagem Crítias.

Crítias afirma que ouviu essa história lhe ser contada por seu avô homônimo, ainda em sua infância, durante um concurso de declamação realizado em um festival de honra aos deuses. O Crítias-avô diz ter sido essa história trazida por Sólon[1] anos antes. Já este a obteve durante uma viagem que fez a Sahis, uma cidade egípcia próxima ao Delta do Nilo, dita como amiga de Atenas.

Em Sahis, Sólon falou de antigas genealogias e acontecimentos de Atenas para os sacerdotes egípcios da região. Um destes, porém, o interrompe, dizendo como os gregos apenas se lembram de acontecimentos muito recentes. Segundo esse sacerdote, isso se deve ao fato de que, ocasionalmente, catástrofes naturais de fogo ou água dizimam as cidades gregas, o que as impede de guardar relatos antigos sem que seja pela forma de histórias adulteradas em lendas e mitos. Como exemplo, o sacerdote cita o mito de Faetonte[2], dizendo que se trata de uma lenda construída sobre uma calamidade de fogo. Sahis, por sua vez, é salva desses desastres devido à posição geográfica do Egito, o que lhe garante segurança tanto das calamidades por fogo quanto das calamidades por água. Devido a isso, conseguem manter registros escritos de todos os povos que já existiram.

O sacerdote diz que os atuais gregos nem ao menos sabem que a maior e melhor raça de humanos que já existiu foram atenienses de antigamente. Diz ele que Atenas e Sahis são originalmente irmãs, criadas pela mesma deusa[3], mas que Atenas antecede sua irmã egípcia em mil anos; além disso, Sahis foi fortemente influenciada por Atenas em questão de leis e organização da cidade. A quando dessa conversação entre Sólon e o sacerdote, Sahis é dita como tendo oito mil anos, então essa Atenas magnânima existiu nove mil anos antes.

Dos feitos dessa Atenas de outrora, um se destaca dentre os demais: a vitória na guerra contra um império que já dominava diversas partes do mundo e que cuja capital era uma imensa ilha localizada além das Colunas de Héracles[4]. Esse império tentou sujeitar, de uma só vez, os territórios que ainda não estavam em seu domínio. Foi graças ao esforço militar de Atenas (primeiramente chefiando os demais gregos[5] e, mais tarde, sozinha) que o império de Atlântida foi derrotado, o que fez com que todos os povos subjulgados fossem derrotados.

Porém, tão logo terminou tal guerra, novos cataclismos assolaram o mundo. Graças, principalmente, a tremores de terra, em apenas um dia e uma noite toda a armada ateniense se perdeu, enquanto Atlântida foi eternamente engolida pelo mar.

Isso é tudo o que se relata sobre Atlântida, e como se sabe sobre ela, no Timeu. É interessante notar como a história é apontada como verídica, chegando a se evocar a memória de Sólon para reforçar a veracidade.

Crítias

 Esse diálogo descreve de forma mais pormenorizada tanto a antiga Atenas quanto Atlântida. Crítias, dessa vez, inicia sua história contando sobre como os deuses dividiram o mundo em seu início. Cada divindade cuidava de certa parte, guiando os humanos que lá viviam. Atenas e Hefesto, por terem os mesmos interesses em ciência e nas artes (lembrando que arte na Grécia Antiga era tudo que requeria algum saber prático), receberam juntos a região onde construíram Atenas e habitaram-na com pessoas autóctones (surgidas na própria região) de boa conduta. Já Poseidon ficou com Atlântida em seu encargo, fazendo com que a ilha se desenvolvesse e enriquecesse graças a sua influência.

A Atenas de outrora tinha uma maior extensão territorial, solo riquíssimo, relevo mais exuberante, ótimo clima e uma excelente organização de sua população. Todos esses fatores se deterioraram graças às recorrentes catástrofes. O efeito destas é melhor descrito no Crítias: sendo os dilúvios mais comuns, parte da cidade, por se encontrar em terreno baixo, é sempre devastada, enquanto as pessoas incultas que vivem nas montanhas sobrevivem. Apenas conheciam grandes nomes e acontecimentos por meio de boatos, sem nunca os conhecer. Então, nomeavam seus filhos com nomes de grandes personagens sem que jamais tivessem noção de quem realmente foram. Essas pessoas passam um longo período trabalhando apenas para suprir suas necessidades básicas, portanto demoram a desenvolver a prática intelectual, fruto principalmente do ócio citadino.

Quanto a Atlântida, como foi dito, ficou a encargo de Poseidon. Este deus se relacionou com uma mortal chamada Clito, e dessa união surgiram dez filhos, distribuídos em cinco gerações de gêmeos cada. Esses filhos e seus descendentes se tornaram os reis de Atlântida; o primogênito, entretanto, era o rei principal, assim como sua linhagem, sendo os demais seus vassalos. Cada rei governava determinada parte da ilha, mas, periodicamente, eles se encontravam no templo de Poseidon, localizado na região central.

A ilha era internamente cortada por três canais circulares de água do mar, construídos pelo próprio Poseidon. Com isso, a ilha era uma alternância entre anéis de terra e anéis de água. Clito foi originalmente instalada na porção central, e Poseidon pessoalmente embelezou esta parte da ilha. O centro, então, era o local mais importante, onde se localizavam as principais edificações.

Atlântida também é apontada como possuidora de grande riqueza, opulência e coisas exóticas. Em especial, dois elementos se sobressaem: primeiro, os elefantes. Estes animais eram conhecidos dos gregos principalmente devido ao seu contato com povos da Ásia. Porém, como são componentes apenas da fauna asiática mais a Leste do continente, os gregos consideravam que os elefantes eram a maior espécie animal existente e um símbolo de exotismo. Em segundo lugar, o oricalco. Este metal é apontado como extremamente valioso e, segundo Crítias, poderia ser extraído facilmente em qualquer parte da ilha. Boa parte das construções, principalmente as da região central, foram feitas com oricalco.

A parte final do diálogo menciona a deteriorização de Atlântida. Com o passar do tempo, a porção humana dos atlantes começou a suplantar a porção divina. Com isso, tornaram-se perversos e gananciosos. Isso desagradou aos deuses. Zeus decide convocar uma reunião no Olimpo para debater a situação de Atlântida e definir um castigo para fazer com que os habitantes da ilha reavaliassem seus atos. O diálogo é interrompido no momento em que Zeus fará um pronunciamento aos demais deuses.

O fim do Crítias

 Os possíveis motivos para o Crítias estar incompleto já foram alvo de muita especulação. Há quem diga que Platão não o completou pois veio a falecer, e há quem diga que não terminou meramente por ter perdido o interesse e ter se dedicado a outros assuntos. Não parece estar em pauta a questão da perda de conteúdo com o passar do tempo (algo, infelizmente, extremamente comum com textos vindos da Antiguidade). A meu ver, há dois motivos principais para isso: em primeiro lugar, ambos os diálogos foram alvo de grande interesse desde a Antiguidade, seja pela descrição de Atlântida ou por outras razões (por exemplo, o Timeu foi bastante utilizado por alquimistas de Alexandria e da Europa devido a passagens que não tratei aqui). Isso favoreceu muito para que ambos os diálogos fossem conversados, visto que os exercícios de cópia eram constantes. Em segundo lugar, lamentações pelo fato do Crítias estar incompleto também foram feitas desde a Antiguidade, como o caso de Plutarco (um historiador greco-romano dos séculos I-II EC), a qual entrei em contato.

Isso não nos impede, porém, de tentar imaginar como seria a continuação do Crítias. Sabemos que os atlantes estavam em decadência, e sabemos, pelo Timeu, que Atenas vence Atlântida numa guerra e esta, ainda por cima, é tragada pelo mar devido a mais uma onda de catástrofes. Se ligarmos a questão da decadência com as catástrofes, teremos um tema que é bastante comum em diversos povos e que eu já tratei ao falar de dilúvios: cataclismos da natureza que forças divinas lançam contra os humanos motivados por ações errôneas que as pessoas estavam cometendo. É só uma suposição, claro, mas chama à atenção o fato de Zeus querer castigar Atlântida e esta, como se sabe, é completamente destruída e tomada pelo mar.

O Mito

Deixando de lado as implicâncias da narrativa para o pensamento de Platão, foquemos na questão do mito. Afirmar que a história de Atlântida é um mito[6] é dizer algo óbvio. Já algo diferente é se perguntar se Platão cunhou a história de Atlântida ou se utilizou de alguma história do tipo que já fosse existente (e de seu conhecimento).

A segunda abordagem pode ser defendida ao se apontar as reutilizações de mitos em ambos os diálogos. Além do já mencionado Faetonte, há também, por exemplo, relações com mais dois outros mitos no diálogo do Crítias: a divisão harmoniosa do mundo parece fazer relação com a história da contenda entre Atena e Poseidon pela posse de Atenas (a deusa vence, obviamente), e o trabalho conjunto de Atena e Hefesto parece fazer relação com o mito em que Hefesto tenta estuprar Atena. Inclusive, a autoctonia dos atenienses parece fazer alusão com o esperma de Hefesto que Atena, tomada de extremo nojo, limpou de sua coxa e jogou ao solo. Mitos que envolvem catástrofes também eram de conhecimento dos gregos.

A primeira abordagem, porém, me parece a mais verídica e me é a mais interessante. Na lógica dela, Platão reutilizou sim uma série de histórias e mitos do “arcabouço” grego, mas a fim de tecer algo novo, uma história sobre uma antiga Atenas e sua vitória sobre um grande império. Dessa forma, podemos dizer que Platão criou o mito de Atlântida.

[1] Sólon foi um ateniense de fins do século VII AEC e VI EC que exerceu funções legislativas e estatais na cidade. É também muito lembrado pelas poesias compostas. Durante a Antiguidade, foi considerado como um indivíduo sábio.

[2] Faetonte é filho de Hélios, o sol, e uma mortal. Querendo provar que realmente possuía origem semidivina, ele vai até a casa de seu pai e pede a biga solar emprestada, que lhe é concedida. Faetonte tenta fazer o percurso diário de seu pai, mas não consegue controlar a biga, fazendo com que, literalmente, diversos lugares queimem pela proximidade do sol.

[3] A deusa principal de Atenas era a grega Atena. Já a principal divindade de Sahis era a egípcia Neith, uma deusa com atribuições das mais diversas, mas que se sobressai sua questão armamentícia, seja para caça ou para guerra. Os gregos identificaram Atena com Neith, possivelmente por esta lógica armamentícia (Atena também era uma deusa bélica, mas voltada para as questões de tática da guerra, enquanto Ares é mais voltado para a questão da violência).

[4] Atual Estreito de Gibraltar, ponto de divisa entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.

[5] Só para lembrar: A Grécia Clássica não possuía unidade territorial. Consistia, na verdade, de uma região com cidades-estados (em geral) independentes, mas que partilhavam semelhanças culturais e linguísticas dentre si. A unidade política só chegará ao território com Alexandre da Macedônia, na segunda metade do século IV AEC.

[6] Ao dizer mito não estou afirmando que se trata de uma coisa falsa, inventada, alucinação ou algo do tipo. Digo apenas que se trata de uma história não comprovável que se mantém, se reproduz e se altera no imaginário social ao longo de séculos graças a mecanismos diversos.

Texto retirado do blog Causas perdidas e publicado com autorização

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