Espinosa e a potência do ser

– Rafael Trindade

Pense em algo, pense em qualquer coisa, ela é possível de existir? Digo, ela tem contradições internas que impedem sua existência? Não? Então ela existe? A resposta é: não necessariamente, isso apenas faz com que esta coisa tenha a possibilidade de existir… mas o que faz algo efetivamente existir? Ou ela é produzida por si própria ou por outra coisa.

A potência de uma coisa existir está em si mesma ou vem de fora. No nosso caso, somos versões reduzidas desta potência de existir, somos causados por forças exteriores que nos engendraram e ao mesmo tempo temos em nós parte destas forças que nos permitem existir. O finito reflete o infinito, ou seja, somos parte de um ser absolutamente infinito que existe em si mesmo e se produz necessariamente, chamá-lo-emos Deus.

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Giacomo Balla – dinamismo de um cachorro na coleira

A realidade, como um todo, é um devir de produção e criação. Esta existência é absoluta em todos os aspectos: infinita e eterna. O Deus de Espinosa é a potência infinita de expressão e atualização, não há nada fora dele, nada o limita, nada está para além de sua existência. Deus é causa sui, ele é definido por sua potência de existir e produzir. Isso significa que a unidade de Deus se manifesta através da multiplicidade: a expressão de Deus se dá na diferença.

Estamos indo muito rápido? Deus é a causa de todas as coisas que existem. Ele é a causa imanente, não transitória; ele não cria o mundo e vai embora, muito pelo contrário, o mundo é ele mesmo, ele se manifesta através do mundo. Cada essência, eu você, todas as coisas, é parte da potência infinita de Deus. E ela se exprime absolutamente e infinitamente através dos atributos, dos quais só conhecemos dois: pensamento e extensão. Nós, seres limitados por natureza, exprimimos parte da potência infinita de Deus; esta potência em ato é chamada de Modo por Espinosa.

Certo, acho que podemos passar adiante. Como essa potência se manifesta? Através do poder de existir, de afetar e ser afetado. Como parte da potência infinita de Deus, eu tenho em mim forças que se esforçam para manterem-se na existência. É o conatus, uma força ativa que se esforça (tal como Deus), para produzir. E mais, esta potência que existe em ato, ativamente, tem características singulares de afetar e ser afetado. Vamos logo ao que interessa: a potência.

Essência é potência. Somos corpos, limitados em extensão e duração, modos, como diria Espinosa, mas os modos estão em Deus. Isso significa que afirmar a minha potência é afirmar o que há de divino em mim. Tomar parte da potência é expressar o que há de Deus em você, ser causa ativa na criação do mundo. Toda expressão da potência é boa, sem exceção, por quê? Porque a potência é a manifestação do Infinito no seio do finito, ela é a força de composição do universo que gera bons encontros. A questão ética é então efetuar sua potência, da mesma maneira que Deus, ou, a natureza, faz.

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Umberto Boccioni – Dinamismo do corpo humano, 1913

Fazemos isso através do corpo. O corpo é um conjunto de relações que estão em uma determinada harmonia. Estas forças se conjugam de forma que mantém a sua proporção de velocidades e repousos entre as partes. O conatus é a capacidade deste corpo manter a sua forma. O que pode um corpo? Ele pode o quanto ele tem potência. Um moralista define o corpo pelo que ele deve; mas nós, imoralistas convictos, definimos o corpo pelo que ele pode. Não sou um escravo aqui com um lugar garantido no céu, isso é pura ilusão para aguentar o sofrimento. Eu sou o que eu posso, eu sou minha potência, que é a minha essência em ato. Eu sou tão perfeito quanto eu posso ser.

Mas então eu posso matar? Posso, eu provavelmente tenho potência para isso. Então eu posso estuprar? Posso também, se eu tiver potência para tanto. Mas será que eu devo?(Esta é a diferença entre poder e potência) A questão ética do “efetuar a sua potência” gera muitas confusões! Efetuar sua potência é necessariamente agir para gerar bons encontros, ou seja, compor com o mundo. Pense em um quarteto de cordas: eu tenho a capacidade de tocar violino, mas se estiver nervoso, eu posso tocar fora do tom e arruinar a música. Eu posso também tocar isolado de outros instrumentos, e neste caso nada aconteceria. Ou este ato de vibrar as cordas do meu violino pode ser compor com a harmonia da música que está sendo tocada pelos meu companheiros. Neste caso, as cordas ressoam entre si, isto é o aumento de potência. Eu atuo no mundo.

Eu ponho a música que eu amo, aqui, todo meu corpo, e minha alma – isto vai por si – compõe suas relações com as relações sonoras. É isto que significa a música que eu amo: minha potência é aumentada” – Deleuze, Curso sobre Espinosa

Quando a música ressoa em mim, eu começo a bater o pé no ritmo, isso me alegra, a música por sua vez também se alegra (ela efetuou um bom encontro). Quando eu coloco um fone de ouvido e danço no ritmo, a música se alegra tanto quanto eu. Tudo isso se dá para além da consciência. Eu chego em casa e digo para um amigo, “tal música é muito boa“,ainda estou efetuando bons encontros. Quando faço uma poesia para a mulher amada, quero que a as relações de velocidade e lentidão presentes na poesia afetem de modo a aumentar a potência da mulher que amo. E assim por diante…

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Giacomo Balla – A Mão do Violinista

Agir é agir pela potência, agir é sempre ir em direção da liberdade. A afirmação do ser é uma abertura para o infinito, ele multiplica as relações, aumenta nossa capacidade de afetar e ser afetado. Nós somos uma composição de partes em relação. Estas partes mantêm uma proporção e uma singularidade próprias. É como se tivéssemos uma vibração própria, podemos pensar no corpo como uma caixa de ressonância; certas forças me atravessam e ressoam em mim, quando isso acontece, geram um bom encontro, minha potência de agir aumenta; no entanto, outras forças me atravessam e diminuem minha potência, então minha potência diminui. O corpo é nosso instrumento ético. A potência do meu ser se expressa através destas relações de proporção entre velocidade e repouso. Tal como a música, tal como a dança, a potência do ser é sua capacidade de gerar bons encontros e suportar maus encontros sem perder suas proporções. Somos corpos que vibram ao som da música divina.

Disse Zaratustra: “para vos revelar inteiramente meu coração, meus amigos: caso houvesse deuses, como suportaria eu não ser deus? Portanto, não há deuses” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra). Temos uma resposta lindíssima que podemos reinterpretar aos olhos de Espinosa: “Vós sois deuses“.

Texto retirado do blog Razão Inadequada e publicado com autorização

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