Nei Nordin
Num dos momentos mais emocionantes da festa de abertura das olimpíadas de 2016 no Brasil, uma réplica do 14 bis de Santos Dumont simula um vôo, amparado por cabos e tripulada por um ator caracterizado do personagem histórico. Consta que a atração quase foi cancelada por questões orçamentárias.
Diante do fato, a delegação de atletas norte americanos manifestou indignação e as redes sociais emitiram comentários debochados, como aquele que afirmou que “seja onde quer que estivessem, os irmãos Wright estariam às gargalhadas” com a triste demonstração. A historiografia norte americana reinvindica ferrenhamente a invenção e nega o pioneirismo brasileiro. Como este país possui uma poderosa indústria cultural, boa parte do mundo aceita sua versão. Mas a história pode não ser bem aquela. Vamos aos fatos.
Nunca como no século XIX a ciência foi louvada e acalentada pelos sonhadores. Não faltou quem olhasse aos céus e desejasse que o homem voasse livre como os pássaros. Não era mais uma utopia. Tratava-se já de uma professia com os dias contados e a posteridade apenas aguardava a revelação do nome de quem seria o primeiro. As pesquisas mais promissoras concentravam-se em dois eram problemas principais. Em primeiro lugar a possibilidade de dirigir balões para o destino desejado. Em segundo, fazer com que aparelhos mais pesados que o ar pudessem flutuar.
Posto que era uma questão de tempo até que surgisse alguém reivindicando ser o pioneiro da aviação, foi necessário que se definissem regras precisas daquilo que se poderia considerar tecnicamente como o primeiro vôo da História.
A França era um dos centros científicos onde a discussão se concentrava. A criação do Aeroclube francês data de 1898 e tinha como objetivo definir os preceitos da aviação e criar eventos que estimulassem os empreendedores. A partir de critérios precisos, foram oferecidas premiações. As experiências deveriam ser públicas, com data marcada, condições climáticas favoráveis e diante de uma comissão especializada.
No ano de 1901 Santos Dumont arrematou um prêmio de cinquenta mil francos após contornar a torre Eiffel num dirigível de hidrogênio (dirigível nº 6) impulsionado por um motor a gasolina. Ele percorreu onze quilômetros em torno de meia hora.
Santos Dumont nasceu em Minas Gerais no município de Palmira, que atualmente leva seu nome. Consta que a obra do escritor Julio Verne exerceu enorme influência na imaginação do inventor que desde cedo mostrou-se fascinado por tecnologia. Na juventude, Santos Dumont viajou à França onde praticou alpinismo chegando à conquistar alturas de cinco mil metros, acostumando-se com altitudes elevadas. Também conheceu a Inglaterra e os Estados Unidos.
Quanto à possibilidade de que um corpo mais pesado do que o ar levantasse vôo era uma história bem diferente. Físicos renomados chegaram a declarar que tal façanha seria impossível. Contudo homens cheios de obstinação viriam provar que tal descrença não se fundamentava.
Clément Ader projetou uma máquina voadora que chegou a voar, mas não ganhou altitude. O norte americano Samuel Langley fez um pequeno modelo não tripulado voar. Um nome que avançou muito nas pesquisas foi o alemão Otto Lilienthal com seus planadores, demonstrando que o sonho era possível. A morte deste último numa tentativa de vôo em 1896 lançou um clima de apreensão e medo entre os inventores. O aeroclube francês não considerava que planar fosse um vôo.
A notícia de impacto chegou em 1903 quando um telegrama anunciava que os irmãos Orville e Wilbur Wright tripularam um aparelho mais pesado que o ar indo contra ventos de quarenta quilômetros por hora e chegando a percorrer uma distância de trinta e nove quilômetros. Contudo, nenhuma evidência era apresentada. Nenhuma foto e somente um telegrama escrito pelos próprios irmãos atestava o feito.
Diante do fato de que sequer era permitido que testemunhas neutras visualizassem a experiência, o aeroclube francês desconsiderou a experiência dos irmãos Wright que, por sua vez, relutavam em demonstrar sua invenção na Europa. Alega-se que um dos motivos era que seu aparelho necessitava ser impulsionado por uma espécie de catapulta. Outra razão era o medo de que a ideia fosse roubada. Mesmo em solo norte americano, a feira de Saint Louis de 1904 ofereceu um prêmio para que realizasse a façanha do de voar, mas os irmãos não compareceram.
Interessante é que o próprio jornal “The Dayton Daily News”, que noticiou a façanha dos irmãos Wright em reportagem de 18 de dezembro de 1903, estampava a manchete citando ninguém menos do que Santos Dumont. O 14 bis ainda não tinha voado, mas o brasileiro certamente já era uma referência na incipiente ciência da aeronáutica,
As regras definiam então que a demonstração de vôo deveria ser realizada sem qualquer interferência de ventos ou outros fatores externos. O aparelho deveria decolar por seus próprios recursos. Uma comissão oficial deveria testemunhar e validar a façanha.
Assim, nos campos de Bagatelle, em Paris, no dia 23 de outubro de 1906 uma comissão, juntamente com uma multidão de curiosos, testemunhou o primeiro vôo homologado da história. O 14 bis de Santos Dumont percorreu uma distância de 60 metros numa altura de dois a três metros, o que lhe valeu o prêmio de três mil francos.
Em menos de um mês ele realizou um vôo na distância de 220 metros a seis metros de altura.
Ao contrário dos irmãos Wright, Santos Dumont não fazia segredo de seus projetos chegando mesmo a publicá-los. Antes de voar com o 14 bis, construiu vários protótipos de diversos tipos até chegar num modelo que voasse. Em 1907 ele tornaria a ganhar os céus com o Demoiselle que chegou a ser produzido em escala industrial e foi destaque na Primeira Exposição Aeronáutica, em Paris.
Somente em 1908 os irmãos Wright apresentaram na Europa seu modelo de máquina voadora, o Flyer, com fotos do vôo de 1903. Voar não era mais uma novidade e as atenções agora estavam sobre as distâncias a serem percorridas. Neste quesito os irmãos estavam na frente, pois sua aerodinâmica de controle da máquina voadora era muito superior. Eles realizaram vôos de mais de cem quilômetros de distância e causaram sensação quando os modelos atuais faziam a distância de pouco mais de dois quilômetros. No ano seguinte o francês Louis Blériot atravessaria o canal da Mancha baseado nas ideias do Flyer. Neste ponto o 14 bis era precário.
Se ainda existe quem desdenhe o pioneirismo brasileiro na aviação, um fato pitoresco pode ajudar. Cem anos após o vôo inaugural de Santos Dumont o 14 bis foi visto novamente nos céus. O coronel paulista Danilo Flôres Fuchs construíu uma réplica totalmente baseada no projeto original de Santos Dumont. Seu modelo fez diversas demonstrações bem sucedidas, incluindo Paris em 1991.
Quanto ao Flyer, existe atualmente uma fundação (Discovery of Flight Foundation) que também fez réplicas almejando fazer o mesmo com o modelo dos irmãos Wright.
Encontro inusitado
No ano de 2007, familiares descendentes de Santos-Dumont e dos irmãos Wright se encontraram pela primeira vez, firmando uma espécie de paz simbólica. O encontro aconteceu em São Paulo e tinha por objetivo divulgar os pioneiros da aviação, em vez de alimentar disputas entre eles.
Os protagonistas foram Amanda Wright Lane, sobrinha-bisneta de Wilbur e Orville, e Mário Villares, sobrinho-neto de Santos-Dumont estiveram frente a frente na Base Aérea de Cumbica – SP. Ali foi selada a paz em uma das mais famosas disputas por prioridade científica da história. Foi celebrado o espírito pioneiro, presente nos dois lados, como o que realmente importa. Cada um teve os seus próprios méritos.
Amanda Wright Lane, afirmou que a discussão sobre quem foi o primeiro a voar sequer era uma obsessão da dupla norte americana. quando eles desenvolviam seu aparelho. Somente se posocionaram quanto a isso após uma falsa informação do instituto a Smithsonian atribuir o pioneirismo a um terceiro personagem. Isso ocorreu depois da morte de Wilbur Wright.
O encontro de Amanda e Mário ocorreu por iniciativa do empresário Fernando Arruda Botelho, que tem se empenhado em divulgar a imagem de Santos-Dumont nos EUA, onde o inventor é praticamente desconhecido. Botelho pilotou, em 2006 uma réplica do Demoiselle (construída por ele mesmo) em Dayton, cidade dos irmãos Wright. Na ocasião voaram juntos o Demoiselle, de Santos-Dumont, e o Flyer Model B, dos Wrights. Foi um encontro histórico.
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