– Criação coletiva*
The Walking Dead – os mortos errantes, ou mortos que andam – é uma série televisiva lançada em 2010, que tem até agora sete temporadas. Sua história surgiu em 2003, em uma HQ, criada por Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard e serviu de inspiração para o principal produtor da série: Frank Darabont. A série fala sobre uma distopia estadunidense (porque as tragédias sempre acontecem nos Estados Unidos…) em que um vírus surge e PLAU! Todos viram zumbis.
P.S. Nessa distopia, nunca se ouviu falar de zumbis, e nas sete temporadas, a palavra zumbi nunca foi citada. Sem filmes ou a menor noção do que é zumbi, as pessoas não tem nenhuma ideia do que fazer. Obrigada aos criadores de filmes de zumbi, vocês podem estar salvando vidas.
Todos se desesperaram, e os zumbis dominaram a terra. Despreparados, os sobreviventes tentaram reagir, mas ninguém sabia o que fazer. O caos se instalou. A série, mesmo tendo temática zumbi, não os retrata como protagonistas. O que rouba a cena e tem o foco são as relações humanas.
Após uma análise da primeira temporada da série, e tendo o cuidado de evitarmos spoilers desnecessários, podemos observar vários pontos onde há inferência filosófica. Vamos por partes, resumindo a trama da primeira temporada e ressaltando os pontos onde a filosofia pode ser vista, aplicada e refletida.
Vamos começar do começo:
O vice xerife Rick Grimes está em uma perseguição junto com os outros colegas polícias, incluído seu melhor amigo Shane, quando leva um tiro. O mundo ainda estava normal, e Rick foi levado diretamente à um hospital. Em estado grave, o xerife entra em coma, mas todos acreditam que ele irá melhorar, e realmente melhora, contudo, talvez fosse melhor nem ter despertado.
Após acordar do coma, Rick se vê sozinho em um hospital destruído e cheio de cadáveres. Assustado, desesperado e sem nenhuma ideia do que estava acontecendo, o policial protagonista tem como único objetivo encontrar sua família. Sem saber o que tinha acontecido com tudo, e ainda debilitado, acaba por encontrar Morgan e seu filho, que ainda permaneciam em casa, e não em um grupo de sobreviventes, porque Morgan se via incapaz de deixar sua esposa – que era uma errante – e não encontrava coragem de dar-lhe o tiro de misericórdia. Assim, e movido pelo amor, Morgan acaba colocando a si mesmo e ao filho em risco. Sem spoilers, mas isso acaba prejudicando-o muito no futuro. A emoção, prejudicial para um bom julgamento, deixa Morgan incapaz de tomar as decisões certas para proteger a si mesmo e ao filho, confirmando os pensamentos do filósofo alemão Immanuel Kant, que via a emoção como algo que apenas atrapalhava a moral, a ética, obstruía a visão do que era realmente certo e atrapalhava a tomada de decisões. Aparentemente, nesse momento, ele estava certo…
Enfim, Rick deixa-os para trás, indo para Atlanta onde, segundo boatos, há um grande grupo de sobreviventes. Movido pela vontade de encontrar sua família, torcendo para que eles estivessem bem, Rick pegou um carro – até ele ficar sem gasolina e trocar por um cavalo – e foi-se para Atlanta. Chegando lá, viu-se cercado por zumbis, que ficaram bastante empolgados quando sentiram o cheiro de carne fresca. Como o ser humano egoísta e egocêntrico, deixou o cavalo para morrer e escondeu-se em um tanque de guerra.
Acabou sendo encontrado por alguns sobreviventes que roubavam estoques de lojas em busca de suprimentos. Em meio ao caos, a “ética” de nada valia. A mutabilidade diante do caos é mais forte. Heráclito afirma que nada é definitivo e que os valores podem mudar em meio ao caos. Eles precisavam furtar para sobreviver. Nesse caso, seria considerado Furto Famélico, certo? O furto famélico é o furto realizado para saciar uma necessidade urgente e relevante. É o furto para comer pois, se não furtasse, morreria de fome. É o furto de um remédio essencial para sua saúde, um cobertor em uma noite de frio, ou roupas mínimas para se vestir. Tendo o direito à vida e a manutenção dela, numa situação crítica e emergencial o furto para sobreviver pode sim ser opção. Nada mais justo sendo que não há ninguém para cobrar ou manter os itens. A necessidade gera novas visões. O instinto de sobrevivência fala mais alto.
De toda forma Rick acaba “entrando” no grupo e já de cara mostra sua autoridade e o espírito de liderança esperado de um mocinho. Depois de certos conflitos entre T-Dog e Merle, por questões raciais (é absurdo como, mesmo em tempos apocalípticos ainda haja a presença marcante de todo tipo de preconceito, mas falemos disso mais tarde…), Rick impõem-se e algema Merle num cano no telhado. Quando o prédio é invadido por zumbis, T-Dog tem que ser rápido, e acaba perdendo a chave da algema… ajudar e correr riscos ou fugir e garantir sua sobrevivência? T-Dog faz a segunda escolha. O sentir o conduz, como diria Rousseau, e embora a razão o alerte de que o certo a se fazer era ajudar Merle, o instinto de sobrevivência tende a falar mais alto.
Após conseguirem fugir dos “mordedores” –um dos muitos nomes que os zumbis receberam na série -, eles retornam ao acampamento de sobreviventes, dessa vez acompanhados por Rick, que se emociona ao ver a esposa, o filho e o melhor amigo bem. Sem saber dos chifres que carrega, o xerife não poderia estar mais feliz.
Shane, melhor amigo de Rick, se apaixonou por Lori, esposa deste, que acreditando na morte do marido, retribui aos sentimentos do policial. Contudo, com a volta de Rick, após tudo o que aconteceu em Atlanta e o inegável espírito de liderança dele, Shane se vê dividido entre o que seria certo, ético e moral (a razão) e seu coração (a emoção), tentado a seguir seus sentimentos, pensa em matar o amigo para realizar os desejos de ficar com Lori. Os sentimentos, como Kant disse, se mostram um obstáculo na realização do que é certo. Os impulsos apaixonados e egoístas de Shane podiam ter comprometido a sobrevivência do grupo e dado um fim rápido à história.
Após o reencontro familiar, o clima fica tenso quando revelam a Daryl – irmão do Merle – que haviam abandonado o colega no telhado. Daryl fica muito zangado. Muito mesmo, e Rick, com certo peso na consciência e guiado pela benevolência que lhe cabe como mocinho, vai com um grupo para resgatar Merle. Enquanto isso, Shane e o resto do grupo ficam no acampamento, onde as mulheres estão ocupadas lavando roupas enquanto Shane leva o filho de Rick, Carl, para pescar rãs. Umas inconformadas, outras aceitando que o mundo é assim, as mulheres continuam numa posição fraca e submissa, onde o homem acha que é superior e que lugar de mulher é fazendo as tarefas domésticas. Ed Paletier é a figura mais machista e sexista da primeira temporada. Não aceitando ver uma mulher o questionando, Ed se desentende com Andrea – que acha errado ver a esposa dele, Carol, apanhando e se inferiorizando por ele – e acaba agredindo as moças. Shane, que já estava irritado por todas as questões relacionadas a Lori e o retorno de Rick, acaba perdendo a razão – no sentido Kantiano mesmo – e age por impulso e deforma o rosto de Ed, ameaçando acabar de vez com ele se ele não mudasse seu comportamento. Mesmo no meio de uma crise social absurda – um maldito apocalipse zumbi! As mulheres continuam sendo vitimas de abuso. O preconceito está tão enraizado nas pessoas que nem mesmo nos momentos em que as pessoas precisariam dar as mãos, elas dão. O preconceito é fruto da ignorância e da estupidez, e como diria Einstein: duas coisas são infinitas, o Universo e a estupidez humana.
Enquanto isso, o grupo de Rick volta à Atlanta e sobem ao telhado e imagine o quão surpresos ficam ao encontrarem uma mão! Apenas uma mão algemada e um serrote.
Para evitar uma morte dolorosa e um fim trágico nos estômagos dos zumbis, Merle preferiu perder a própria mão à ser devorado. Bem, eles não o encontram. Mas, pequeno spoiler: ele aparece depois.
Aproveitando a busca malsucedida, eles encontram uma bolsa cheia de armas que Rick esqueceu na cidade. Porém não são os únicos interessados nas armas. Um outro grupo de sobreviventes viu a bolsa e a queria. Eles brigam, Rick e seus companheiros pegam a bolsa, em contrapartida o outro grupo sequestra Glenn. Rick leva um garoto rival com eles, como uma “moeda de troca”.
Nesse interim, o acampamento sofre com vários problemas internos, em especial com Jim, que perdeu as esperanças e não vê mais razão para viver. Nesse contexto, seria justificável desistir de sua própria vida? Jim viu toda sua família morrer para a fome insaciável dos zumbis, não acredita em uma possível melhora. Ele não é o único da série que não deseja viver nesse contexto com a chance de acabar como um deles. Jim cansou, não quer mais. O suicídio é uma opção?
Enquanto Rick e os outros estavam resgatando Glenn, descobriram que os rivais eram mocinhos também, e cuidavam de idosos. “Deixaram eles aqui para morrer” explica o líder do grupo de sobreviventes, “ficamos só eu e Felipe, ele é enfermeiro e eu, um faxineiro”. Os médicos e outros funcionários foram embora e eles se prontificaram a cuidar dos vovôs e vovós que não teriam condições de se virarem sozinhos. Eles entram em um acordo, felizes em não lutarem.
Voltando para o acampamento, Rick, Daryl, T-Dog e Glenn são surpreendidos por um ataque. Houveram muitas baixas, e os sobreviventes tem que lidar com a perda e ter sangue frio para dar um tiro na cabeça de seus mortos, se não eles voltariam como errantes. Não era um risco que eles podiam correr. Emoção e razão em conflito novamente. É um momento delicado, mas a sobrevivência do grupo é mais importante. Tem que ser mais importante.
No meio do ataque, Jim foi mordido e consequentemente infectado. Enquanto tentam lidar com isso, Andrea lamenta a morte da irmã e tem que ser forte quando ela volta como zumbi. Os outros ficam surpresos com sua atitude corajosa. Andrea soube fazer o que era necessário, por mais que lhe doesse.
Jim está sofrendo com a infecção, enquanto os outros enterram os seus mortos e os zumbis são queimados. Sujos de sangue, extremamente tristes, eles tem que partir. O acampamento não é mais seguro, e eles resolvem ir em busca do CDC-CCD, em português, ou centro de controle de doenças -, esperando encontrarem ajuda e abrigo.
Se organizando para partirem, Jim está nos seus limites, algumas pessoas decidem partir e se virarem sozinhas. O grupo reduzido segue seu caminho, porém no meio dele Jim pede para deixa-lo ali, cansado demais, Jim desistiu. Ele não é o único a desistir durante a primeira temporada.
É difícil para o grupo deixa-lo. Mas novamente a razão tem que ser preferida.
Eles seguem para o CDC, atravessando um cenário de guerra cheio de cadáveres e insetos. Os restos de um exército que foi destruído. Assustados e desesperados, encontram dificuldades para entrar. Se ficarem ali, enquanto a noite cai, serão devorados. Como uma luz no fim do túnel, as portas do centro de controle de doenças se abrem. Esperançosos, eles entram em busca de salvação. O que eles encontram, no entanto, é o último médico capaz de “ajuda-los”. O Dr. Jenner poderia ser uma salvação para a espécie humana. O único capaz de fazer a “cura” para a epidemia zumbi. Porém Jenner está tão perdido, assustado e desacreditado que a única coisa que ele pode fazer é acolhe-los. A solidão certamente não o fez bem.
Jenner é um bom anfitrião, farta-os com um banquete. Eles, felizes e sentindo-se seguros, dão-se ao luxo de esbanjarem. Mesmo após todas as provações, eles não se privam, não guardam. Qualquer chance de aproveitar eles aproveitam, sem racionalizar, sem cuidado. Parece que toda a dificuldade é esquecida ante um momento de prazer. Exageros são cometidos sempre que possível, mesmo quando o mundo está acabando lá fora.
Os excessos fazem mal a todos. Bêbados e momentaneamente satisfeitos, se iludem com uma falsa sensação de segurança. Mal sabem que Jenner desistiu da cura. Que Jenner desistiu de tudo.
Quando Jenner conta que vai mandar tudo para os ares e que não tem jeito, Rick se contrapõe. Ainda há esperança, ele acredita. É da natureza humana persistir quando há no que ter fé. A atitude remete à Tales de Mileto que afirmou que a esperança é o bem comum de todos os homens, e aqueles que nada tem ainda a possuem. Ter esperança leva as pessoas adiante.
Contudo alguns já não tem mais fé. Não tem nada à que se agarrar, nada para se prender, e desistem. Jenner já não tem uma âncora, nem Jacqui, nem Andrea. Eles não veem esperança. Eles não querem viver. Já Dale tem, mas por amor ele prefere ficar. Ele coloca a emoção antes da razão. Mas dessa vez o amor se mostra uma salvação. O ato de Dale dá esperança e força para Andrea, e eles voltam para o grupo.
Já Jenner e Jacqui preferem deixar tudo para trás. Eles não têm nenhum motivo.
Isso seria suicídio?
Nietsche acreditava que a morte podia sim ser eleita no momento desejado, quando a pessoa já cumpriu suas metas e objetivos e se sente realizada e satisfeita, e não quer estragar isso.
Após a explosão, eles seguem em frente. Tristes, abatidos, desnorteados. A vida é uma incógnita para eles e só o que desejam é continuar vivendo.
O mundo deles está destruído. Eles não têm chão. Só tem a si mesmos e mais nada. Nenhuma certeza e nenhuma verdade além da morte. São pessoas diferentes, de mentes diferentes e que jamais se encontrariam em outra situação. Ele tem que aprender a viver em grupo.
A série não trata sobre zumbis, a série fala de pessoas, do comportamento das pessoas. O ser humano é mais perigoso que os zumbis. Como Hobbes disse: o homem é o lobo do homem.
.
* Este texto é produto de debate coletivo realizado na aula de Filosofia do Colégio Concórdia – Porto Alegre, turma 3A. Redação final, Silvia Carvalho.
WhatsApp BR