Publicado em abril de 2015
Esta é uma daquelas produções de cinema que acertam em cheio na chaga aberta e latejante (perdoe o trocadilho dramático).
O fato é que “O show de Truman: o show da vida” (The Truman Show) faz uma crítica ferrenha à sociedade de espetáculo e superficialidade que aprendemos a apreciar. E tal aspecto é melhor representado pelos reality shows que chegaram para ficar.Reality shows são programas cuja natureza remete a um vasto plural de gêneros, mas cujo objetivo é demonstrar as atitudes das pessoas frente à situações “reais”. Em se tratando de estratégia de “show business” é realmente uma grande “sacada”. Espionar a vida alheia é praticamente uma atitude inerente à natureza humana. Foi então que alguém percebeu as possibilidades e vantagens de fazer a coisa toda em rede nacional. Foi um estouro de audiência.
De repente uma enorme gama de canais de TV estavam produzindo reality shows de temáticas mais variadas. Caça, pesca, comportamento, música, etc, etc e etc. No Brasil a onda iniciou com o programa “No limite” da Rede Globo de Televisão no ano de 2000. Logo em seguida o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) lançou “A casa dos artistas”, em 2001. No ano seguinte veio o programa de maior destaque: Big Brother Brasil da Rede Globo. Ainda em 2009 foi lançado “A fazenda” pela Rede Record.
Logo se evidenciou a extrema superficialidade de tais produções. Atores já consagrados e confinados mostravam o lado desestruturado e instável de sua personalidade egocêntrica. Igualmente os programas cujo elenco era desconhecido também selecionavam participantes de perfis psicológicos propensos a atitudes mesquinhas e egoístas causando intrigas, conflitos e toda espécie de desagregação, o que só fazia aumentar o ibope. O apelo sexual também ajudava. Os programas logo foram criticados pelo enorme vazio que proporcionavam.
Voltamos então ao filme em questão. Dirigido por Peter Weir, escrito por Andrew Niccol e estrelado por Jim Carrey numa produção lançada em 1988. O trama conta a história do personagem Truman Burbank que foi concebido como um produto para ser exibido em um programa de televisão. Ele nunca soube que toda sua vida era falsa, todas as pessoas que o rodeavam e mesmo aquelas a quem ele amava eram atores contratados desempenhando um papel para o qual foram remunerados.
O show de Truman é exibido em mais de duzentos países. Uma multidão de telefonistas está em prontidão para vender qualquer objeto que apareça na programação. Instantaneamente um diálogo íntimo se transforma no anúncio de um produto qualquer. Assim é a vida de Truman Burbank sem que ele perceba, mesmo com as eventuais falhas de produção: um holofote que cai do céu, um fã que invade a cena, etc. Ele jamais tenta deixar sua comunidade que é rodeada pelo mar. Um trauma de infância envolvendo a “morte” de seu pai incutiu-lhe verdadeiro pavor da água.
Tudo vai bem, mas até que ponto pode sustentar-se uma farsa? O show já completa trinta anos e seu diretor e criador, Christof, interpretado por Ed Harris, controla todos os aspectos de sua vida com milhares de câmaras e capta todas as emoções de Truman para entreter e “sensibilizar” o público. O protagonista começa a perceber que algo está errado na ordem natural de sua vida e, aos poucos, percebe que existe uma série de movimentos orquestrados para lhe coibirem cada vez que tenta romper com os padrões estabelecidos. Parece que todos conspiram para que fique acomodado em seu mundinho pacato.
O público reage a sobressaltos, vibra e se emociona. É um público fiel que acompanha a vida de Truman desde o nascimento. O programa está no ar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana e não há detalhe de sua vida que não seja de conhecimento público e devidamente explorado para fins de aumentar a audiência.
O diretor Christof, o homem que criou Truman e lhe ofertou ao mundo, concebe o protagonista como uma criação sua, quase uma propriedade. Jamais se questionou sobre as implicações éticas de seu ato. Uma analogia perfeita com o dr. Frankeinstein e sua criatura, de Mary Shelley. Declara em entrevistas que só faz o bem para sua criatura e que proporcionou-lhe um mundo perfeito, livre de toda falsidade que impera no mundo verdadeiro. Uma caverna de Platão da qual não vale a pena se libertar.
Contudo, Truman não será o marionete que dele se espera. Seu desejo de ver o mundo além cresce na medida em que percebe que existe alguma coisa errada em sua rotina orquestrada. Podemos tirar muitas lições e reflexões sobre a trajetória de Truman e sua vida. Todos nós desejamos nos libertar de nossas correntes. Em alguma medida não somos todos reféns de alguma coisa?
O final é emblemático. Christof conversa finalmente com Truman, mas não se trata de um diálogo cara a cara. Ele fala como se fosse um deus. Sua voz é emitida de um céu artificial sob a cúpula da falsa cidade cenário. Usa seus argumentos para convencer Truman a ficar.
Melhor ainda é a cena final que denuncia toda a superficialidade da coisa. Dois vigias que assistem o show, representando telespectadores que foram fiéis por anos e que tiveram Truman em suas casas todas as noites, como um membro da família. Eles comovem-se com o final de tudo, mas sua emoção é meteórica. Então um pergunta para o outro:
– O que será que está passando no outro canal?
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