Corrida contra o destino (Vanishing Point) – 1971

Nei Nordin

Encontrei este filme por acaso numa daquelas madrugadas da minha adolescência enquanto procurava algo para assistir na TV. “Zapear” era ainda um verbo desconhecido de todos e não nos atrevíamos a sonhar com todas as possibilidades da TV por assinatura. O fato é que naquela noite assisti a u m daqueles filmes que ficariam marcados por muitos anos na minha memória.

Corrida contra o destino 02Isto por que “Corrida contra o destino” (Vanishing Point), 1971, é um filme carregado de significados profundos, dotado de toda uma simbologia e que consegue transmitir algo como o espírito de uma época. No caso, o mito da década de sessenta da sociedade norte americana.

O protagonista é interpretado pelo ator Barry Newman (1938-). Ele estrelou inúmeras produções para a TV e seus últimos trabalhos contam participações nos seriados Ghost Whisperer (2005-2010), e The Cleaner (2008-2009). A direção ficou a cargo de Richard C. Sarafian (1930-2013) que também dirigiu episódios de seriados clássicos da década de sessenta como Bonanza (1963), Batman (1966), The Wild Wild West (1965), Gunsmoke (1965 a 1968) e filmes como o famoso The African Queen (1977).

O enredo central constitui-se de um argumento muito simples. Kowalski (Barry Newman) recebe a missão de levar um automóvel Dodge Challenger 1970 de Denver, Colorado, até São Francisco, na Califórnia, e aposta com um amigo que completará o serviço em menos de 15 horas. O percurso, realizado em alta velocidade, desencadeia uma perseguição policial em cada Estado que atravessa, numa corrida de proporções épicas.

Contudo, não se trata apenas de uma apologia à velocidade. “Corrida contra o destino” é um filme que tem muito mais para mostrar do que aquilo que se identifica num primeiro momento. Ele parece concentrar o ideal de uma geração no melhor espírito “on the Road”. Sentimos que Kowalski corre na defesa dos valores que foram tão caros àqueles que viveram nas décadas de sessenta e setenta. Ele corre pelo mito da liberdade. Não a liberdade institucional, dos bons costumes e das pessoas “de bem”, mas aquela liberdade de quem vive à margem dos status quo e portanto, tão perigosa e subversiva como quem ganha a estrada e sai sem destino ou compromisso. A polícia o persegue unicamente pelo excesso de velocidade, mas fica entendido que seu grande crime é ser um espírito livre. Esta é a sua transgressão intolerável. E ele voa por entre paisagens grandiosas no traçado do que bem poderia ser a rota 66, um dos ícones norte americanos.

Via de regra, toda epopéia é basicamente composta de dois elementos: a guerra e a busca. Nosso protagonista busca chegar em seu destino correndo contra o tempo e contra todos os obstáculos, mas durante sua trajetória ele parece também fugir de seus próprios fantasmas numa espécie de catarse. Enquanto dirige, seu pensamento é tomado por lembranças de momentos marcantes de sua vida: uma queda em uma corrida de motos; uma capotagem grave numa corrida de carros; o dia em que impediu o colega policial de cometer um estupro; a morte por afogamento de sua namorada. Cenas que vão mesclando-se à velocidade e ao sabor da trama. O espectador toma ciência dos dramas pessoais do personagem e estes fatores passam a integrar o enredo.

Ao protagonista são reservados poucos diálogos. Sua função primordial é dirigir em alta velocidade. Quem lhe dá voz é o radialista negro e cego Super Soul (Cleavon Little) que transmite para todo o oeste. Captando as comunicações da polícia o locutor dá a conhecer ao público a epopéia do solitário e lhe atribui epítetos como “o último herói americano”, “alma livre”, “o supermotorista do oeste dourado” e chama os policiais perseguidores de nazistas. Ele clama: – resista, irmão, resista – e acaba por tornar Kowalski um célebre anti herói. As pessoas acumulam-se em frente à emissora de rádio e por todos os locais onde ele poderá passar. Todos querem vê-lo mesmo que por um segundo e anseiam por notícias do motorista.

Se o filme aborda o contexto dos anos sessenta, como poderia excluir o velho segregacionismo, tão enraizado na cultura norte americana? Veremos assim o radialista Super Soul ter sua rádio invadida por grupos racistas e, junto com seu operador, ser brutalmente espancado:

– Ei, negro. Você, negro tagarela. Vou calar essa sua grande boca negra.

Segue-se uma cena covarde e a rádio é destruída e silenciada como castigo por Super Soul estar dando voz e fama ao corredor solitário.

Ele encontra diversos personagens pitorescos que lhe prestam auxílio e também contribuem para compor o cenário: o velho que coleta serpentes no deserto para trocá-las por comida; o motoqueiro hippie; a linda garota nua sobre a motocicleta; o casal gay que tenta assaltá-lo e são jogados para fora do carro. Capa personagem que cruza seu caminho simboliza um papel no universo de uma sociedade alternativa.

Corrida contra o destino 05Kowalski luta contra a fadiga, o sono, abandona a estrada e enfrenta o deserto. Por fim retoma o asfalto e segue seu rumo. O destino inicial agora já não importa. Algo aconteceu e ele não pode voltar ao ponto de partida. Não é mais a mesma pessoa que era quando iniciou o percurso. Aquele punhado de horas o transformou radicalmente, chegar ao final ou retomar sua vida. Tudo deverá terminar ali mesmo na estrada. Ele investe seu carro contra o pesado bloqueio feito por dois tratores fixados na estrada, causando uma enorme explosão. A cena final sugere que as pessoas estão revirando os destroços à procura de suvenires. A morte trágica é, afinal um dos elementos que compõe o mito.

“Corrida contra o destino” é um filme de cenas marcantes. Imagino que tenha causado grande impacto àqueles que viveram a década de sessenta nos Estados Unidos. Na época em que eu o assisti, era ainda jovem e pouco entendia de seu contexto. Mesmo assim pude sentir que havia um apelo muito forte na demanda do personagem que corria contra tudo e contra todos.

2 respostas

  1. O engraçado é que fizeram uma releitura terrível do filme, com Viggo Mortensen, um filme ralo e repleto de clichês. Uma sacanagem com o original, que brinca com o plano de fundo por trás de uma aparente história simples e cheia de significados.

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